Antes de nos conhecermos pessoalmente, o Gilberto Dimenstein e eu nos
tornamos amigos. Nossa amizade aconteceu em torno de uma paixão comum que se
manifestou por meio dos nossos escritos. Ambos temos uma curiosidade insaciável
pelas coisas da vida, pelos objetos do mundo que nos cerca. É essa curiosidade
que nos faz pensar. Pensamos para acalmar essa “comichão” nos pensamentos que
se chama curiosidade. Nisso nos parecemos com Alberto Caieiro. Ele sentia o
mesmo. Tanto assim que escreveu: Sinto-me nascido a cada momento para a eterna
novidade do mundo[1]. A
última coisa que se pode sentir da “eterna novidade do mundo” é tédio. O
pensamento é uma criança que explora esta caixa de brinquedos chamada mundo.
Pensar é brincar com os pensamentos.
Temos, ao mesmo tempo, um “grilo” com as rotinas que se cristalizaram nas
escolas tradicionais e que se transformam em normas. São muitos os
que sentem o mesmo. Bruno Bettelheim, já velho, lembrando-se de suas
experiências de criança disse que na escola os professores tentavam ensinar-lhe
o que ele não queria aprender da forma como eles queriam ensinar. Roland
Barthes foi outro a sentir o mesmo. Escreveu um delicioso ensaio sobre a
preguiça e declarou que ela, a preguiça, pertence essencialmente às rotinas
escolares porque nas escolas os alunos são obrigados a fazer o que não querem
fazer e a pensar o que não querem pensar. Ah! Como é doloroso fazer os deveres de
casa! Bem diz a palavra são “deveres”! Imposições de uma autoridade estranha. A
verdade é que se a criança pudesse, ela não faria os deveres. Preferiria fazer
outras coisas. Mas o ditado popular afirma: Primeiro a obrigação, depois a
devoção. O aluno, sem querer, mas obrigado, arrasta-se sobre o dever que lhe é
imposto. O corpo e o pensamento resistem. Essa resistência que faz corpo e
pensamento se arrastarem é a preguiça... Mas existirá uma razão por que a
“obrigação” e a “devoção” devem ser inimigas? Quem, que poder, que sujeito
determinou que devesse ser assim? A curiosidade é a voz do corpo fascinado com
o mundo. A curiosidade quer aprender o mundo. A curiosidade jamais tem
preguiça! Por amor às crianças – e ao corpo – não seria possível pensar que o nosso
primeiro dever seria satisfazer essa curiosidade original, curiosidade que faz
com que a aprendizagem do mundo seja um prazer? Ficamos, então, a partir das
nossas próprias experiências de aprendizagem a pensar que deve ser possível uma
experiência de aprendizagem baseada na curiosidade e não imposta pelos
programas. O fato é que existe um descompasso inevitável entre os programas
escolares e a curiosidade. E, isso, porque os programas são organizações
formais e universais de saberes a serem aprendidos numa ordem preestabelecida e
num ritmo único. Disse Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo; quero é fome”.
A fome dos alunos, sua curiosidade, não deseja comer o queijo que os programas
lhes oferecem. Então, não seria possível uma experiência de aprendizagem
baseada na fome? O fracasso das instituições de ensino tem a ver com isso: elas
oferecem uma comida que os alunos não querem comer...
Baseados em nossa própria experiência, acreditamos que aprender é muito
divertido. Bem disse Aristóteles, na primeira frase da Metafísica, que todos os
homens têm, naturalmente, o desejo de aprender. Mas, a potência que faz com que
todos tenham o desejo de aprender é a curiosidade. Sem ela, ninguém quer
aprender. Quem está possuído pela curiosidade não descansa. Não é necessário
que se lhe imponham obrigações e deveres porque o prazer é a motivação mais
forte.
O Gilberto e eu, vivendo em épocas e situações diferentes, tivemos
experiências escolares semelhantes. Não nos interessava aquilo que os programas
diziam que tínhamos de aprender. Assim, não aprendíamos. Fomos empurrando a
escola com a barriga, arrastando-nos, tirando más notas, passando vergonha,
possuídos pela preguiça. Ah! A suprema felicidade de quando um professor
adoecia e não aparecia para a aula! A felicidade começava quando a escola
terminava! Mas o problema é que havia um acordo tácito no julgamento que se
fazia sobre nós, julgamento sobre o qual concordavam pais e escolas. Todos
estavam de acordo: éramos maus alunos.
Maus alunos na escola, tínhamos uma enorme voracidade por coisas que não
estavam nos programas. Não é que nos faltasse fome. Fome nós tínhamos. O que
não tínhamos era fome para comer a gororoba padronizada que se servia nos
restaurantes chamados escolas. Daí passamos a fazer nossa própria comida... O
que não foi mau...
A idéia partiu do Gilberto: Rubem, por que não nos reunimos para
conversar informalmente sobre nossa experiência escolar? Gravamos a conversa e
ela poderá se transformar num livro! A idéia me fisgou na hora.
Quando se vai escrever um texto ou um livro, acontecem dois processos. O
primeiro fundamentalmente e original, é uma orgia de idéias. As idéias vêm por
conta própria, irracionalmente, inexplicavelmente, atropelando, saltando,
dançando, numa enorme farra sem ordem alguma. O que o escritor faz é apenas
anotar as ditas idéias para que não sejam esquecidas. Nesse momento, elas se
parecem com as centenas de peças de um quebra-cabeça espalhadas sobre a mesa. O
segundo é um processo racional de juntar as peças na ordem certa, para que se
forme o quebra-cabeça. O que se dá ao leitor, geralmente, é o quebra-cabeça
montado e pronto, artigo ou livro. O leitor nada fica sabendo da farra que o
antecedeu. Isto é: o leitor não participa da dança das idéias.
O que me fascinou na sugestão de um livro que fosse a transcrição de uma
conversa é que o leitor participaria das idéias no momento e na forma do seu
aparecimento, antes que a razão lhes fizesse a “toilette”... Idéias abruptas,
incompletas, inexplicadas, na sua desordem gramatical, sem nenhuma preocupação
com a forma final do quebra-cabeça pronto... Quando se lê um texto completo o
pensamento marcha, um passo atrás do outro. No nosso caso, o pensamento não
poderia marchar. Ele teria que saltar e dançar, ao sabor dos saltos e da dança
das idéias.
Foi o que fizemos. Reunimo-nos para conversar e gravar, sem nenhuma
preocupação com conclusões. Sem nenhuma idéia sobre o destino. Como disse
Guimarães Rosa, o que importa não é a partida, nem a chegada; é a travessia.
Este livro é uma travessia que não chegou a destino algum. Esperamos que você
goste da viagem. E pense seus próprios pensamentos...
[1] Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1992, p. 204.
Texto extraído do livro Fomos maus alunos, escrito em co-autoria por Rubem Alves e Gilberto Dimenstein.
Nenhum comentário:
Postar um comentário