O que é necessário para ser um bom terapeuta?

Por Flávio Gikovate
E-mail: instituto@flaviogikovate.com. br

Nas revistas de psiquiatria surgem periodicamente estudos completos (meta-análises) de revisão de eficácia dos diversos tipos de psicoterapia. Os resultados são, quase sempre, similares - hoje com certa vantagem para a psicoterapia comportamental. Além de resultados bastante semelhantes, lembro-me de um estudo que li há cerca de 30 anos (cuja referência me escapa) que mostrava que ao invés de seguidores de uma das diversas teorias os terapeutas podiam ser classificados em "bons" e "maus". E mais, que os bons terapeutas trabalhavam, na prática, de modo muito similar independentemente da corrente teórica à qual se filiavam. Ou seja, na realidade, eram terapeutas ecléticos, que atuavam de acordo com procedimentos que transbordavam os limites das doutrinas nas quais haviam sido formados.

Fiquei profundamente impressionado por esse estudo, que era norte-americano, onde a prática parecia ser mais importante que a teoria. Talvez seja pretensão, mas o que gostaria de descrever aqui são as propriedades que considero fundamentais para aqueles que quiserem ser parte do grupo dos bons terapeutas. E a primeira deriva do que já foi escrito: que a vontade de ajudar o paciente, de entender o que se passa com ele seja maior do que o desejo de encaixá-lo dentro das normas de qualquer teoria.

O que acontece quando conseguimos êxito nesse tipo de procedimento é que o paciente se sente aconchegado, entendido. Se sente menos sozinho! Já estamos diante de uma relação especial que, bem usada, poderá ter grande eficácia terapêutica. Aliás, esse mesmo trabalho cuja referência perdi falava muito da importância dos "fatores inespecíficos" na eficácia das psicoterapias.

Os fatores específicos seriam aqueles derivados da teoria e técnica particular que porventura esteja sendo praticada. Os fatores inespecíficos dependem mais que tudo da postura do terapeuta e de outras peculiaridades próprias de sua personalidade. Tudo leva a crer que os fatores inespecíficos estão longe de serem irrelevantes quando se trata de avaliar resultados. Assim, além de se familiarizar com uma determinada teoria psicológica - que idealmente deverá ser eclética e aberta a todo o tipo de inovações - e de conhecer procedimentos psicoterapêuticos específicos, o bom terapeuta tem que se preocupar consigo mesmo, com sua evolução como pessoa, com o seu papel, com o que ele vai representar para seus pacientes.Em verdade estou me referindo a duas questões diferentes: a do chamado "efeito placebo" e a das propriedades psicológicas do bom terapeuta. Algumas breves palavras a respeito do efeito placebo são indispensáveis, uma vez que a atitude positiva do paciente diante da eficácia de qualquer tipo de medicação, fármaco ou qualquer outro tipo de tratamento, parece aumentar muito a eficácia do dado tratamento. Lembro-me, há 30 anos atrás, de um cardiologista querido - falecido precocemente - que veio me contar, impressionado, como o propanolol parecia muito mais eficaz quando ministrado por ele do que por seus colegas que não eram tão entusiastas em relação ao terapêutico dos chamados beta bloqueadores que estavam nascendo por aqueles anos. Era como se fossem dois remédios diferentes, dizia ele: o que ele administrava parecia de melhor qualidade do que o de seus colegas!
Porém, o efeito placebo serve muito bem para o início de um relacionamento psicológico, para que se estabeleça um bom clima, um clima de confiança e otimismo que, sem dúvida alguma, aumenta muito as chances de se chegar a um bom resultado, especialmente quando a esse efeito se associa um procedimento terapêutico efetivo e eficaz.O preparo intelectual e emocional do psicoterapeuta me parece cada vez mais fundamental. Não que eu seja favorável a procedimentos obrigatórios como o da "análise didática" imposta pelas sociedades de psicanálise; mas a realidade é que um bom terapeuta é portador de determinadas propriedades que deveriam ser a meta daqueles que se dedicam a esse ofício. Acho complicado um indivíduo muito pouco consciente de suas peculiaridades emocionais ser um bom terapeuta. Acho improvável que um drogado seja bom terapeuta, assim como um obsessivo-compulsivo ou um portador de distúrbios da personalidade e precária formação moral. A confiança que um paciente tem que desenvolver em relação ao terapeuta para se sentir à vontade e confidenciar emoções e vivências desagradáveis não são compatíveis com tais características. O bom terapeuta tem que ser pessoa sincera; e espontânea. Tem que se comportar como é. Ou seja, não existe um tipo de terapeuta, um modo de ser terapeuta. O bom terapeuta é aquele que é ele mesmo!Acontece que para uma pessoa poder ser ela mesma tem que estar razoavelmente bem em sua própria pele. Isso não se consegue por decreto. Depende do indivíduo estar em conformidade com seus próprios valores.
Ou seja, o terapeuta com boa auto-estima tem que ter, antes de tudo, um conjunto de valores aos quais se refere. Depois, tem que agir e viver em concordância com esses mesmos valores. Creio que esses são os ingredientes fundamentais do que se pode chamar de maturidade emocional e moral, condição indispensável para que o terapeuta não se perca em nenhuma das situações complexas e, por vezes, constrangedoras que envolvem o trato com pessoas nem sempre tão bem consigo mesmas e muito menos em paz com seus companheiros, inclusive com quem está tentando ajudá-lo.Não se trata de possuir fórmulas prontas. Tudo tem que ser resolvido ali e agora também pelo terapeuta. É preciso ousadia. É preciso que não se tenha medo de errar. É claro que ninguém procura o erro e nem se alegra com ele. Acontece que muitas vezes o erro é muito eficiente para o processo terapêutico: falo algo ao meu paciente que o deixa inquieto e insatisfeito - se falei aquilo é porque achei que estava ajudando e dando o encaminhamento adequado à situação; na consulta seguinte ele volta dizendo que não passou bem e começa de novo a relatar a situação que deu origem à minha má interpretação. Na própria forma de recontar sua história o paciente irá me dar a indicação de onde errei, de modo que poderei retomar uma rota adequada e produtiva, o que será imediatamente reconhecida por ele como tal, já que provocará sensação de alívio e bem estar.
O paciente não se incomoda com nosso erro a menos que queiramos defendê-lo até à morte, tratando sua discordância como "resistência", o que, na maioria das vezes, é absurdo e óbvia manifestação de prepotência do profissional.O bom terapeuta é pessoa serena, amadurecida emocional e moralmente, o que significa na prática que tolera bem frustrações e dores, que tem controle sobre suas emoções, especialmente as de natureza agressiva, que é capaz de ousar, errar, reconhecer o erro e aprender com ele, que tem princípios éticos e vive de acordo com eles. Sendo assim, passará a sensação de ser pessoa confiável, elemento indispensável para o bom andamento de uma relação assim íntima e complexa como é a relação terapêutica. Todo aquele que pretenda se aprimorar como psicoterapeuta terá que ter como meta seu próprio desenvolvimento emocional. Costumo dizer que eu sou o meu cliente favorito!Sempre é bom lembrar que um bom terapeuta é pessoa séria e estudiosa, preocupado em expandir sua formação intelectual, sua base teórica. Terá que ser portador de um cérebro "poroso", o que significa uma capacidade permanente de reciclagem de estar sempre disposto a mudar de idéia se novos fatos - ou mesmo novas idéias - parecerem interessantes e eficientes. Não deve ser um mestre e sim um aprendiz.
Deve colocar-se diante de cada paciente como se pudesse esquecer tudo o que sabe de psicologia e estivesse ali para aprender. É o oposto do que fazem quase todos, ou seja, tratar de rapidamente enquadrar o paciente em um dos seus rótulos e compartimentos. O bom terapeuta é bom ouvinte e está permanentemente aprendendo com todos aqueles com quem conversa. Essa é a razão pela qual a profissão pode ser fascinante por longo prazo. Muitas vezes me perguntaram como é que eu agüento trabalhar tantas horas e por tantos anos. Não estaria eu enjoado de ouvir sempre as mesmas histórias? Claro que não, porque minha postura é a da permanente renovação. Não estou atrás do que aquela dada história tem em comum com tantas outras que já ouvi. Estou atrás do que ela tem de original, de própria, de única. E sempre é possível encontrar algo de novo e fascinante mesmo no mais comum dos relatos.

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