Piaget, antes de se dedicar
aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos
dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos
moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as
profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de
uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que
inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e
lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia
de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a
se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de
imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de
interesse. Continou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua
atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe,
digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo
mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os
outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam
os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes
basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm,
orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam,
disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com
o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça:
deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é
capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o
ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz
o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me,
então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a
concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento,
mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios
vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se
desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos
deu.
O corpo aprende para viver.
É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas,
possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por
aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não
têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais
não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se
parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato
sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece
pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa
inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho.
Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de
recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o
objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que
ela deseja possuir.
Os ditos “programas”
escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser
aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a
aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo
no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no
momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas.
Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em
aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai
faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado
(!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender –
e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar
vida a um conhecimento morto. Sòmente os necrófilos se excitam diante de
cadáveres.
Acontece, então, o
esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca.
Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos
que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor
de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e
guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por
isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem
para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por
serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a
verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito
o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido...
Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência
à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de
transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o
que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares.
Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química
e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários
passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se
faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com
o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores
voltem a aprender com os moluscos...
Rubem Alves
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